O maior horror de perder alguém que se ama… é se perder ainda mais no vazio que fica.
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O texto e as imagens abaixo contém spoilers do filme Bring Her Back (2025).
Bring Her Back — A Dor Come a Si Mesma
Há filmes de terror que assustam pelo grotesco, pela violência, pelo sangue. Bring Her Back, no entanto, é um filme que assombra por sua tristeza desesperada (e às vezes pelo chocante), por sua abordagem cruel do luto, e por colocar em cena o momento exato em que o amor vira obsessão por preenchimento, e a continuidade da vida um culto à negação da realidade.
A história tem início após a morte de Phil, pai de Piper e Andy. Órfãos e emocionalmente fragilizados, os irmãos são levados para viver com Laura (Sally Hawkins), madrasta recém-enlutada que perdeu sua filha, Cathy. É nesse cenário de perdas acumuladas que o terror se infiltra: Laura acredita, com fé mística e desesperada, que pode trazer Cathy de volta. Não como lembrança, não em memória, mas literalmente.
Seu plano? Um ritual obscuro, possivelmente inspirado em práticas ocultistas, que visa transferir a alma da filha morta para o corpo de Piper, sua nova enteada, uma criança cega que, aos olhos de Laura, parece ser um corpo ideal: silenciosa e vulnerável.
Ao lado de Laura está Oliver, um menino mudo, já possuído por uma presença estranha, um corpo vazado, usado como mediador espiritual. Laura o mantém em casa como um receptáculo, ou melhor, como uma ferramenta para acessar uma espécie de realidade além da morte. A presença de Oliver, aliás, é uma metáfora viva daquilo que ela tenta criar: um corpo com alma alheia, um contêiner daquilo que se foi.
Abro um parêntese necessário para destacar a atuação devastadora de Sally Hawkins. Sua Laura não é caricatural, nem histérica (talvez um pouco), é uma mulher em ruínas, tentando erguer um altar em cima dos escombros de si mesma. Em certo momento, ao ser questionada por Andy sobre como superou a morte da filha, ela responde com um olhar vazio, cheio de saudade, uma frase que corta: “Eu não superei”. Há fúria na negação, mas há sobretudo uma dor que não encontrou vazão, e agora escorre pelas frestas do real.
Sally entrega uma performance tão crua que é nas entrelinhas, nos silêncios e hesitações, que a personagem se revela por completo. Laura não é má, é uma boa pessoa tentando fazer algo terrivelmente errado por um motivo que acredita ser válido. E essa contradição está inscrita em cada gesto seu.
Billy Barratt (Andy) e Sora Wong (Piper), em especial esta última em seu primeiro papel, também entregam atuações profundamente sentidas.
Andy, mergulhado em um luto silencioso, carrega o peso ambíguo de amar alguém que já o feriu, e de continuar tentando amar essa pessoa mesmo depois que ela se foi. Seu sofrimento revela uma camada rara do luto: não a dor da ausência pura, mas o conflito moral que permanece. Para ele, o luto não é apenas perda, é também libertação. E nesse deslocamento, entre a dor e o alívio, emerge a possibilidade de um novo começo.
Piper, por sua vez, encarna a imagem de uma infância silenciada e violentamente interrompida, encontra uma nova família apenas para vê-la esvair-se. Seu sofrimento é delicado, quase imperceptível, mas pulsa nos instantes em que, mesmo cega, ela percebe a luz oscilante de um sol que já não sabe se permanece ou se está partindo. Cada feixe que a toca parece carregar o presságio de uma perda iminente.
Os diretores Danny e Michael Philippou, conhecidos por Talk to Me, dirigem com precisão emocional e estilística. A cinematografia e a trilha sonora não apenas constroem a atmosfera, elas a invocam . O filme possui um ritmo interno que pulsa dentro do espectador: alterna momentos de leveza quase familiar, como a cena em que Laura, Andy e Piper dançam e bebem [lembrando até uma cena igualmente potente de Talk to Me - clique para acessar] com momentos de tensão soterrada. Nesta passagem, Ollie observa os três através de um vidro. O som diminui, o tempo parece suspenso, e a sensação de ameaça retorna silenciosamente. O filme sugere que o luto e a dor não são vencidos, apenas adormecem. E desperta nos momentos de maior sensibilidade.
Outro mérito notável dos Philippou é a forma como inserem o sobrenatural em uma narrativa contemporânea, como se fosse possível encontrar uma fita VHS ensinando um ritual necromântico num canto obscuro da deep web. O terror não está apenas no além, está no fato de que a busca pelo impossível se tornou acessível. Como se a tentativa de reverter a morte fosse um passo lógico para quem perdeu tudo. Absolute CINEMA.
A obra também evita explicações didáticas. O simbolismo é orgânico, silencioso e descomplicadamente arquitetado. A figura do círculo, por exemplo, que Laura desenha com os dedos na testa de Ollie, o círculo em volta da casa, é um gesto de aprisionamento simbólico. O círculo representa fechamento, contenção, limitação de fronteiras entre o corpo e o que o habita. É a tentativa desesperada de manter a entidade ligada ao corpo, de impedir que a alma se esvaia novamente. Não se trata de lógica mágica, mas de coerência emocional: o círculo é o eco visual de uma mente que quer controlar o que já não pode ser contido, mas, dentro da ideia de controle, encontramos o aprisionamento em um ciclo de dor.
A obra não precisa explicar tudo. Sua força está em sugerir, em deixar pairando o desconforto. E é justamente por isso que ele assombra: porque há coisas que, por mais que tentemos, simplesmente não voltam. Mas sempre ficam.
~Luto como fanatismo: quando amar é recusar a morte
Laura não consegue aceitar a perda da filha. Mas seu erro não está em sofrer, está em transformar o sofrimento em um vazio que se converte em delírio místico. Em vez de viver o luto, ela se agarra à ideia de que a dor pode ser desfeita, que a morte pode ser corrigida como se fosse um erro de percurso. A maternidade, que poderia ser espaço de acolhimento, se torna um altar sacrificial, onde ela está disposta a matar literal e metaforicamente.
Nesse sentido, o longa se alinha a filmes como Hereditário e The Babadook, onde o luto não resolvido deixa de ser sentimento para se tornar entidade, maldição, possessão.
A escolha de uma criança cega para receber a alma da filha morta não é acidental — e tampouco se limita ao fato de Cathy também ter deficiência visual. Laura elege Piper não apenas por semelhanças sensoriais, mas por enxergá-la como alguém vulnerável, disponível, moldável. Seu corpo se torna, aos olhos da madrasta, um vaso possível: um recipiente onde o amor antigo pode ser derramado, onde o passado pode ser enfiado à força. Não é adoção, é ocupação. Ocupar o lugar do outro.
Mas o maior problema de tentar substituir uma pessoa por outra é que, mesmo na fantasia ritualística do filme, ela não será, e jamais poderá ser, a mesma.
O filme não trata apenas da perda para a morte, mas de perdas em vida. De perder alguém que continua existindo, de perder a si mesmo por ter perdido outro. De perder o eixo. Talvez não haja dor mais dilacerante do que a de se ver vazio diante de algo que um dia foi plenitude. E quantos de nós já vimos isso acontecer?
O término de uma relação amorosa que leva alguém, em desespero, a procurar o mesmo formato em outro ser. A tentativa de colar peças fora de seu lugar. O perigo não está na substituição em si, mas em não dar tempo para que o luto ensine e reinterprete o vazio. Uma dor mal digerida deforma o que vem depois; contamina a expectativa com o gosto amargo do irrecuperável.
Por que a dor de Laura é tão profunda? O filme, sabiamente, não entrega respostas prontas. Ele oferece portas entreabertas, e nos convida a escolher qual atravessar. Laura teve culpa na morte da filha? Foi negligente? Foi uma mãe ruim? Ou apenas acredita que foi? O impacto da morte de uma criança, com toda a vida que ainda viria, já é, por si só, insuportável. Mas em Laura há algo a mais: uma autoflagelação, uma urgência em corrigir o passado, mesmo que com sangue.
Desde os primeiros minutos do filme, sua dor se manifesta como um lamento ritualizado. Relembro a cena em que ela mostra a Piper seu cachorro, morto, empalhado, conservado, como se o simples gesto de manter fosse suficiente para negar a ausência.. E o que somos capazes de manter, só para não nos sentirmos sozinhos? Laura não aceita o fim das coisas. Ela não consegue entender que o fim, às vezes, é tudo o que restou em conjunto das lembranças. E é justamente isso que a devora.
~O ritual, a casa, a maternidade pervertida
O ambiente doméstico é retratado como um lugar simultaneamente familiar e estranho, onde a lógica materna e a estrutura do cuidado foram subvertidas. A casa não é um lar, é um templo ritualístico, cheio de silêncios, portas trancadas, vídeos antigos e relíquias de um passado morto. Cada cômodo guarda um vestígio do que Laura perdeu, ou do que ela recusa perder.
Laura transforma a realidade em encenação. Como uma sacerdotisa desequilibrada, ela manipula Piper, engana Andy, e mata todos que tentam intervir. Para ela, tudo é justificável: morte, mentira, sacrifício, desde que possa "trazer Cathy de volta". Esse pensamento lembra o fanatismo religioso, onde a fé se desconecta da ética, e passa a ser justificável na cabeça de quem crê.
Ela não é uma vilã caricata, é uma mulher destroçada que cruzou a fronteira entre a dor e a fantasia do que poderia ter sido. A mãe que, ao tentar salvar, se torna devoradora. Como a Medeia trágica, que mata os próprios filhos para manter controle sobre o destino… mas, no caso, ela quer reencarnar a alma da filha.
Admiro o roteiro justamente porque, à primeira vista, as atitudes de Laura pareciam apenas frias e racionais, quase funcionais. Ela agia com tanto controle, com tamanha obstinação e aparente lucidez, que não era fácil compreender o real motivo por trás da sua manipulação. Não era apenas loucura: era cálculo. A confusão inicial se dissolve à medida que percebemos que Andy, ao surgir no caminho de Laura, se torna o primeiro obstáculo real em seu plano inicialmente “perfeito”. Ele não deveria estar ali. A presença dele força Laura a improvisar, e é nesse improviso que sua monstruosidade silenciosa emerge com mais nitidez.
Laura urina em um frasco e o despeja sobre Andy enquanto ele dorme, para simular incontinência. Vasculha sua psique, extrai dele, em confidências armadas, as memórias mais íntimas e dolorosas, sobre os abusos do pai, sobre o episódio único e violento em que, aos oito anos, agrediu Piper. E então, como uma arquiteta do trauma, manipula a narrativa diante da própria Piper, distorcendo o passado e reescrevendo os vínculos entre os irmãos. No ápice dessa perversão, agride Piper fisicamente e faz parecer que foi Andy. Usa o passado dele contra ele mesmo.
Laura não destrói Andy com força, ela o mina com discurso. Invade uma relação fraterna. Andy, marcado pelos abusos do pai, buscou ser para Piper aquilo que não teve: segurança. É evidente que ele se arrepende do episódio violento da infância; é evidente, também, que ele a ama. Mas Laura transforma esse arrependimento em culpa, e essa culpa em arma.
A palavra-código “grapefruit”, criada por Andy e Piper para sinalizar quando algo era verdade, é apropriada por Laura como instrumento de minar a confiança entre os dois. Quando revela à menina que Andy foi agredido pelo pai, Laura sabe o que está fazendo: planta dúvida onde antes havia fé e parceiria. Não se trata apenas de destruir a confiança, trata-se de reconfigurar a realidade afetiva de Piper.
A separação final entre os irmãos é, nesse sentido, um triunfo narrativo de Laura. Piper permanece com ela. Andy, dilacerado e impotente, parte em busca de ajuda. A máquina ritualística está quase pronta.
É tocante perceber como Laura, embora nunca demonstre diretamente histeria, está inteiramente consumida pela dor. Ela é um exemplo de como o luto pode ser mascarado. Vinte anos atuando como conselheira lhe deram a habilidade de manipular com empatia aparente. Tanto que uma colega de profissão, sem suspeitar de nada, a indica como guardiã temporária de Piper, sem jamais imaginar que Laura já estava afundada no sangue e na carne congelados de Cathy. O ritual começou bem antes da cerimônia: começou no instante em que Laura escolheu sobreviver à perda negando a morte.
~Oliver: o corpo ritualizado e a fome por continuidade
Oliver é introduzido na narrativa como mais uma criança sob os cuidados de Laura. Desde sua primeira aparição, o menino é envolto em mistério: dentro de uma piscina vazia agarrando um gato. Um dos olhos, inclusive, parece deslocado: as pupilas são de tamanhos diferentes, como se aquele olho estivesse vendo o mundo com um olhar que não lhe pertence. Abaixo de um deles, uma marca de nascença, ou talvez de invocação, o liga diretamente à figura mostrada no início do filme durante o ritual necromântico. Tudo nele evoca um estranhamento primordial.
Jonah Wren Phillips, ainda tão jovem, entrega uma performance inquietante. Há algo de profundamente desconfortável em sua presença, não pelo que faz, mas pela dúvida do que é. O corpo de Oliver é um enigma: ele não fala, não expressa desejos, não reage de forma previsível. Ele apenas existe, e, mesmo assim, parece habitado por algo que o ultrapassa.
Essa mudez não é apenas uma condição clínica ou sintoma de trauma. É símbolo de despossessão. Oliver é um corpo tornado ferramenta, instrumentalizado, sacrificado e ritualizado. Ele não é sujeito da narrativa, mas veículo para que outros se projetem. É o canal para o retorno da filha, o elo entre o mundo dos vivos e dos mortos. Ele não tem voz porque sua função é ser meio, e não fim.
Em Bring Her Back, as crianças são moldes simbólicos daquilo que os adultos não conseguem elaborar. Representam vazios que a dor tenta preencher com delírios, com ressurreições imaginárias, com substituições forçadas. O horror do filme não nasce de criaturas monstruosas, mas da monstruosidade de um gesto humano: apagar alguém real, que existe e faz diferença em sua vida, para manter viva a fantasia daquilo que se perdeu.
O ritual que Laura executa, e do qual Oliver é peça essencial, é transmitido por uma fita VHS antiga, e jamais explicado por completo. Ainda assim, compreendemos o suficiente: uma entidade deve possuir o corpo de uma pessoa viva, que então devorará partes do cadáver do ente querido, para permitir a transferência da alma. É um pacto mórbido entre a recusa do luto e a fome por reencarnação. Não sabemos o que aconteceria com Piper após o ritual. Ela seria banida para um limbo, aprisionada dentro de si como em Get Out? Ou simplesmente deixaria de existir?
Mas sabemos que o que está em jogo não é apenas a morte da alma original, é a violação da identidade, o apagamento de uma subjetividade em nome da memória de outra. A mais cruel das substituições: a de alguém vivo por alguém morto.
No clímax do filme, quando Laura, desesperada, tenta arrastar Piper até a piscina para concluir o ritual, há um momento de intensidade quase mística. Me arrepiei todo no momento em que Laura diz a Piper:
“Escute, tenho que te contar um segredo… eu falei com um anjo... um anjo lindo, que faz coisas lindas. Eu coloquei ele dentro de Ollie, e agora, ele vai colocar Cathy dentro de você, porque você é como ela: incrível e perfeita.”
Há um brilho nos olhos de Laura, não de bondade, mas de convicção messiânica. Naquele instante, ela não vê Piper, vê apenas o molde onde deseja fundir a memória da filha. Vê projeções do que quer viver com sua filha morta.
É nesse ponto que a atuação de Sally Hawkins alcança seu auge: ela transforma fanatismo em ternura, loucura em devoção, delírio em serenidade. Sua Laura não está cega apenas pela dor — está encantada por sua própria fantasia. E, como uma sacerdotisa de um culto que ela mesma criou, ela conduz o ritual com a certeza absoluta de que está fazendo o bem para si mesma. Esse é o horror mais difícil de enfrentar: quando o mal acredita estar salvando.
~A fome de Ollie:
seria impossível deixar de mencionar o aspecto visceral do longa, suas cenas de gore e terror corporal, inquietantes não apenas pela repulsa visual, mas pela carga simbólica que carregam. Ollie, como receptáculo que é, devora o mundo à sua volta com uma fome ancestral. Devora, inclusive, uma faca (que cena!!). Não se trata apenas de violência, trata-se de incorporação. De absorver para manter. De mastigar algo, mesmo que o corte, para eternizar.
Quando ele devora parte do gato, começa a chiar e miar como o animal. Quando consome partes de Laura e Andy, assume temporariamente suas vozes. É como se sua identidade, já esvaziada, se formasse a partir das sobras, como um espelho fragmentado que só reflete pedaços do outro. Ollie não é sujeito, é extensão da fome de um ente que habita nele. Fome de continuidade, de pertencimento, de repetição. Sua existência é performática, reflexa, ritualizada: ele é o que consome.
Essa fome, no entanto, vai muito além do corpo. Ollie encarna a nossa fome por mais tempo com aqueles que se foram. Uma fome que é universal, silenciosa e insaciável. Nunca o tempo que tivemos parece suficiente. Sempre há algo que faltou dizer, um gesto que não se repetiu, uma memória que gostaríamos de reencenar. E essa carência nos transforma… às vezes em poetas, às vezes em fantasmas.
O horror que Ollie representa não está apenas em devorar carne, mas em sugerir que há algo dentro de nós que seria capaz do mesmo, se a promessa fosse a de trazer alguém de volta. Ele é a expressão monstruosa do desejo de reviver o irrecuperável. A cada pedaço ingerido, ele tenta reconstruir… o impossível.
Ao perder alguém… talvez, como Laura, cruzássemos fronteiras morais. Talvez, como Ollie, deixássemos de ser quem somos para sermos apenas instrumento. Talvez, no fundo, sejamos todos corpos tentando manter viva uma voz que já se foi.
~O clímax: a explosão da negação
Tudo começa a ruir de forma irreversível. Laura, pressionada pela presença da antiga colega de trabalho que suspeita do ambiente opressivo da casa, entra num colapso que já vinha sendo nutrido há muito. Ela atropela a amiga e atropela Andy, com brutalidade. A morte de Andy é de uma crueldade que não permite palavras: não há mais espaço para justificativas sobre a dor de Laura. Seu amor se transformou em tirania. Sua busca virou destruição. Laura, aqui, deixa de ser vítima do luto.. mas, ainda sim sentimos muito por ela.
Ollie, agora completamente tomado, devorou parte do corpo de Cathy e aguarda. O ritual está em andamento, o corpo está pronto, a transferência parece prestes a se concluir.
Então vem o fim...
Laura, sob uma chuva densa, tenta afogar Piper na piscina. A imagem é bíblica, simbólica, trágica — uma mãe tentando matar a possibilidade de futuro em nome de um passado irreversível. Aqui, o filme alcança seu ápice simbólico: o luto, se não elaborado, se torna destrutivo. A água, símbolo de inconsciente e de renascimento, torna-se túmulo.
No ápice do desespero, Piper agarra o braço de Laura e grita “mãe”. A palavra explode no ar, dolorosa, múltipla. Não é Cathy falando. É Piper. Uma menina com nome, identidade, deficiência, história. A palavra não é reconciliação, é um grito de socorro. Nesse momento, Laura hesita. Não por acreditar que ali está sua filha ressuscitada, mas por perceber que está matando outra filha. Uma que nunca foi sua, e nunca será, mas que é tão viva quanto Cathy um dia foi.
É a ruptura. Laura compreende, enfim, que mesmo que o ritual funcione, nunca será a mesma pessoa. Porque ninguém pode habitar um corpo alheio sem ser violentado. A morte é irrecuperável. E aquela tentativa de negação é uma nova forma de violência.
Laura recua. Piper foge. Ollie vomita o que restou de Cathy, num gesto final que mistura o espiritual com o grotesco. O corpo não aceita mais ser instrumento. O ciclo é rompido.
E então, silêncio.
Laura, flutuando na piscina, com o corpo de Cathy nos braços, como uma Pietà corrompida, representa o que restou: uma pessoa sozinha com a sua dor, agora irremediavelmente real.
Andy está morto. Piper sobrevive. Laura está no limiar entre o delírio e a lucidez.
E um avião cruza o céu.
Andy, em vida, dizia que aviões no céu eram um sinal de que as pessoas estavam indo para o paraíso. Agora, o avião paira como uma dúvida, ou talvez uma esperança, para onde vamos quando tudo que amamos se foi? Quem ainda poderá voar?
Bring Her Back encerra como um réquiem: não para os mortos, mas para os vivos que tentam negar a todo custo a morte. Seu horror não está nos gritos, mas nos silêncios entre uma respiração e outra. Nas escolhas que fazemos quando amamos demais, ou de forma errada. E, sobretudo, naquilo que somos capazes de fazer, não para salvar alguém…
…mas para não afundar sozinhos.
Agradeço a você que chegou até aqui. Escrever sobre um filme como Bring Her Back não é apenas revisitar enredos: é atravessar dores, encarar espelhos, nomear vazios. É um exercício de vulnerabilidade, e, sobretudo, de partilha.
Se você, em algum momento deste texto, sentiu algo se remexer aí dentro, uma lembrança, uma perda, uma ausência, um amor que já não está, então talvez este post tenha cumprido sua função: lembrar que o horror mais profundo não está no sobrenatural, mas no que nos falta. E, mesmo assim, seguimos, e como seguimos..
Obrigado por caminhar entre escombros comigo. Por olhar de frente o que tantas vezes escondemos. Por dar sentido ao que escrevo, com a sua presença silenciosa, mas sentida.
Que entre uma perda e outra, ainda possamos encontrar palavras.
E que, entre uma palavra e outra, ainda reste uma faísca capaz de nos incendiar…
Nos vemos na próxima travessia e, novamente, muito obrigado.
Com afeto, Rafael, ou Charlie :)
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Baita texto amigo!
Ligar todas essas experiências ao filme é algo sensacional, acabei de ver ele ontem a noite e estava tentando não pensar muito nele, mas esse texto caiu muito bem!