Você já amou tanto que quis desaparecer dentro do outro? Já sentiu uma fome que não era de comida, mas de pertencer a algum lugar, a alguém, a si mesmo? Bones and All (2022), dirigido por Luca Guadagnino, não é um filme sobre canibalismo. Ou melhor: é, mas não da forma que você pensa. O canibalismo aqui é linguagem e metáfora.
Hoje vamos falar sobre uma obra profundamente simbólica, dolorosa e, acima de tudo, poética em sua estranheza. À primeira vista, é um romance com elementos de horror — a história de dois jovens canibais que percorrem os Estados Unidos em busca de pertencimento e sentido. Mas, ao mergulharmos em suas camadas, percebemos que o filme fala, na verdade, sobre a fome que todo ser humano sente e carrega. Não apenas a fome por carne — literal no caso dos protagonistas — mas a fome de amor, de aceitação, de identidade, de conexão.
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Este texto contém spoilers (texto e imagens). E dor. Muita dor.
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O canibalismo e a violência como metáfora
O aspecto mais evidente e, ao mesmo tempo, mais metafórico do filme é o canibalismo. Ele não é usado como uma provocação gratuita, mas como um símbolo de marginalidade extrema. Os protagonistas, Maren e Lee, não escolhem ser canibais — eles simplesmente são. Como uma maldição que lhes foi imposta ao nascer, eles vivem à margem de qualquer estrutura social, rejeitados, perseguidos e condenados por algo que não compreendem por completo.
Neste ponto, o filme constrói um paralelo direto com a experiência de viver como alguém que carrega um traço "inaceitável" para o mundo ou para a maioria — seja por sua sexualidade, classe, identidade, condição psíquica, traumas ou doenças.. O canibalismo, ou melhor, ser um devorador, simboliza aquilo que faz você se sentir inaceitável, à parte da sociedade. E o horror maior não é comer carne humana — mas ser alguém que não pode simplesmente existir sem carregar culpa, medo e dor.
Você já se sentiu assim? Como se a sua diferença fosse uma cicatriz aberta diante dos olhos do mundo? Às vezes, ninguém precisa dizer nada — o silêncio já dize tudo. Há uma rejeição que não grita, mas fere como um corte invisível. E você sente. Sente no corpo, na alma, no peso do ambiente. Você se sente sujo! A dor não está apenas no que é feito, mas no que é negado: a aceitação, o afeto, o pertencimento.
Aos poucos, algo começa a se construir dentro de você — uma culpa que não é sua, mas que se entranha como se fosse. Você começa a achar que há algo de errado em simplesmente ser quem é. E esse é o veneno mais cruel da indiferença e da exclusão: às vezes ela não te acusa diretamente, mas faz com que você se acuse constantemente.
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Você já se sentiu culpado por simplesmente existir como é? Talvez você não precise ter um desejo insaciável de carne humana — talvez seja apenas o fato de que você parou de sentir qualquer coisa, porque foi traumatizado demais para suportar. Ou, ao contrário, talvez sinta demais, e esse excesso de sentimento te consome, te devora, te rasga por dentro. A indiferença dos outros faz parecer que isso é “demais”, que você é demais. Então você se encolhe, se retrai, tenta se adaptar. E, na tentativa de ser compreendido, você se expõe — e se fere ainda mais.
Você sangra tentando explicar sua dor a quem quer ou não escutá-la. E será que vale todas as novas feridas que isso abre?
Tudo isso se torna tão íntimo, tão entranhado, que quando você ousa compartilhar com alguém em quem confia — quando você se mostra por inteiro — sente-se invadido, violado. É como se tivessem te flagrado em um ato obsceno. Como quando Maren ou Lee são vistos, de repente, no auge de sua fome, devorando um corpo — não com prazer, mas com necessidade, com vergonha, com um tipo de dor que é impossível traduzir. E esse olhar que os flagra — aquele olhar que acusa, que repudia, que se afasta — é o mesmo olhar que tantos já sentiram sobre si, mesmo quando não havia ninguém na sala.
Porque às vezes o monstro não está na carne. Está no espelho. Mas quem constói a imagem que o espelho reflete… desculpe te falar: é você!
Maren: a procura por identidade
Maren é uma jovem que foge após um evento traumático em que ataca uma colega. Abandonada pelo pai, ela parte numa jornada para entender quem é, tentando localizar sua mãe biológica. A viagem se torna, aos poucos, uma busca por pertencimento, por respostas, por alguém que a compreenda — mas, mais do que isso, por uma identidade que ela possa aceitar sem vergonha.
Ela carrega uma dúvida dilacerante: será que sou má por ser quem sou?
O filme não oferece uma resposta. Mas convida o espectador a caminhar com ela.
Maren não escolheu ser como é. Desde pequena, sente a necessidade de comer carne humana. Ela tenta fugir disso, negar, esconder. Mas a natureza, nesse filme, não pede licença. Ela escancara.
Quando conhece Lee, outro jovem canibal, o filme desliza suavemente da narrativa de sobrevivência para o amor. Mas não um amor puro, limpo, hollywoodiano. Um amor sujo. Que fede a sangue, a medo, a abandono. Um amor entre dois seres que foram ensinados a se odiarem, a se esconderem, a sobreviverem, mas não a viverem.
E ainda assim, eles tentam. Porque o amor é isso: uma tentativa desesperada de existir junto com o outro. De não ser um monstro, mesmo quando o mundo inteiro diz que você é..
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Por vezes, a recusa dos outros em nos aceitar nos empurra para uma espécie de precipício interno, onde precisamos escolher entre negar quem somos ou assumir a dor de existir no limite. A exclusão constante nos coloca em estado de urgência, e então tomamos decisões desesperadas — não por maldade, mas por fome. Uma fome de pertencimento, de ser compreendido, de viver sem se esconder. E essa fome, quando ignorada, não desaparece: ela se contorce, se mascara, e exige ser saciada de alguma forma.
No filme, Maren e Lee matam um homem. Um homem que, mais tarde, descobrem ter esposa e filhos. A culpa consome Maren. Ela pergunta, num misto de angústia e incredulidade: “Por que fizemos isso?” E Lee, tentando contornar a dor, responde de forma ríspida: “Como você ousa tornar isso mais difícil?” Mas ele não está zangado com ela — ele está zangado com a realidade, com a impossibilidade de viver aquilo sem sofrimento. Porque, no fim, matar para sobreviver não os liberta. Os destrói por dentro. E perceber que você sendo você é algo destrutivo, dói..
A mãe de Lee, que se recusou a ser uma devoradora, enlouqueceu. Ela preferiu a morte emocional. Negou sua natureza até que sua mente se partisse. E aí surge uma pergunta brutal: quando você não pode ser quem é, o que acontece com sua alma? Será que, ao negar sua essência, você enlouquece?
Maren, ao encontrar a mãe, é devastada. Não encontra acolhimento, mas mais uma recusa. A mãe que ela idealizou — aquela que a entenderia, que a guiaria, que a ensinaria a viver com aquilo — simplesmente não quis saber dela. Ela não negou apenas a filha. Negou a si mesma. E isso destrói Maren. Porque até então ela acreditava que, ao lado da mãe, tudo seria mais fácil. Que juntas, encontrariam uma forma de ser. Mas nem isso o mundo lhe concedeu.
Lee, tentando contê-la, explode: “Você está livre agora, e isso te assusta. Você passou a vida inteira sozinha, escondida, e agora que tem alguém, você não sabe o que fazer com isso.” Ele a confronta, não por frieza, mas porque reconhece nela o mesmo desespero que o habita: o medo de que até o amor seja apenas uma trégua antes da próxima dor. Porque, às vezes, finalmente ter liberdade é tão assustador quanto nunca tê-la tido.
Lee: o trauma do abandono
Lee representa um retrato ainda mais trágico: um jovem cuja vida foi marcada pelo abandono, abuso e violência. Ele come — sim, literalmente — aquilo que o mundo rejeita, como uma forma brutal de lidar com a dor. Mas ele também se recusa a ser domesticado, a viver conforme as regras de uma sociedade que já o condenou antes mesmo de conhecê-lo. Sua rebeldia é sua forma de sobreviver. Mas isso o corrói, pouco a pouco.
A relação entre Maren e Lee cresce de forma delicada, como se fossem dois corpos feridos tentando se tocar sem causar ainda mais dor. O amor entre eles é uma tentativa de cura, mas também um lembrete de que, às vezes, o amor não é suficiente para apagar quem somos ou o que precisamos fazer para sobreviver.
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Lee parece ser durão. Sua linguagem é ríspida, seus gestos secos, seu olhar constantemente armado. Mas, por trás dessa couraça, existe um menino que nunca foi autorizado a existir com delicadeza. Ele compartilha com Maren uma dor silenciosa: a de se sentir sujo, deformado por dentro. Lee também acredita que há algo de essencialmente errado com ele — não apenas por ser um devorador, mas porque aprendeu, desde cedo, que o mundo não tolera sua existência.
Seu maior trauma não foi ter sido ferido, mas o que fez para reagir a essa dor. Lee matou o pai. Não por impulso. Mas porque ele feria sua irmã, feria seu corpo, feria sua alma. O assassinato foi, paradoxalmente, o gesto mais humano que Lee conseguiu oferecer — um ato de proteção. E, no entanto, o que o destrói não é o assassinato em si. É o que vem depois: ele o devorou.
Lee se sente culpado não por ter se defendido, mas por ter sentido prazer ao finalmente mostrar ao pai quem ele era. Por ter gostado de devorá-lo. Isso, para Lee, é a cicatriz que mais arde. Ele não apenas matou o monstro — ele se tornou o monstro por um instante. E, naquele instante, ele foi verdadeiramente ele.
Ao compartilhar isso com Maren, Lee chora. Mas não são lágrimas de remorso puro. São lágrimas de quem, por um momento, encontrou poder na própria monstruosidade. E não soube o que fazer com isso. São lágrimas de alguém que finalmente foi visto, mas só conseguiu mostrar sangue.
Lee queria amor. Mas quando mergulhou em seu passado, só encontrou carne crua. E, por isso, ele dói. Em silêncio. Com orgulho ferido. Com raiva de si mesmo por ainda precisar tanto de afeto, mesmo depois de ter aprendido a sobreviver sozinho.
Comer é Amar
No desfecho do filme, o amor e a dor se tornam indistinguíveis. Lee está mortalmente ferido após a luta contra Sully. Ele encontra, entre os macabros troféus do devorador solitário, um novo conjunto de cabelos: de sua irmã. O mundo, que sempre o rejeitou, agora lhe entrega a confirmação final de que ele nunca pertenceria. A irmã, que ele tentou proteger à sua maneira, foi devorada — como tudo o que ele amava. E, com isso, Lee desiste. Não da vida apenas, mas do próprio mundo.
Ele olha para Maren com olhos exaustos, e não suplica por salvação, nem por remédio, nem por perdão. Pede: “Somente me ame. E me devore.”
Não é um gesto de desespero, mas de entrega. Seu corpo já não lhe pertence. O amor que sente por Maren é o último lugar em que pode habitar. Se o mundo não lhe permitiu viver como homem, ele decide morrer como parte dela. Ser consumido por quem o amou, não como punição, mas como comunhão.
E Maren, mesmo tomada por dor, aceita.
Ela o devora.
Não por fome. Não por sobrevivência. Mas por amor. Por piedade. Por fusão. É a única maneira de não deixá-lo desaparecer — é o gesto mais extremo e terno de permanência que o filme ousa construir. Maren o carrega dentro de si, como uma tentativa desesperada de interromper o ciclo do esquecimento. Como se dissesse: “Já que o mundo não nos deixou ser dois, que ao menos sejamos um.”
Não há erotismo, não há fetiche, não há selvageria gratuita. Há uma despedida que rasga a carne. Há um amor que sangra até os ossos. Há um silêncio tão profundo que nenhuma palavra conseguiria conter.
É o amor em seu limite. É a dor em seu ápice. É a esperança que, mesmo ferida, escolhe devorar o que resta — para que, ao menos, reste algo.
Até os Ossos
A expressão "até os ossos" não é apenas gráfica — ela é filosófica. No universo do filme, há uma espécie de mito entre os canibais: aqueles que um dia comem “até os ossos” experienciam algo transcendental. Um limite de transformação, um ponto de não-retorno. Isso ecoa profundamente com o conceito de se entregar por completo a uma experiência, a um amor, a uma dor, a si mesmo.
Seria essa a libertação total? Ou a destruição final?
Quanto uma dor, um amor, um sonho podem penetrar e fundir em nós? Ir fundo. Rasgar. Arder. Permanecer.
Maren come Lee até os ossos? Não sabemos. Mas o que ela está comendo ali é o passado, é a esperança que não deu certo, é o futuro que nunca será. É o único jeito que ela encontra de amar plenamente, mesmo que isso signifique perder.
Porque às vezes, a única forma de manter algo dentro da gente é destruindo-o.
E isso é cruel. Mas também é verdade.
Uma Fórmula para a Esperança?
O filme é melancólico, mas não exatamente pessimista. Ele reconhece a dor de existir, a tragédia de carregar dentro de si algo que o mundo não aceita, mas também honra a tentativa de se conectar, mesmo na margem. O amor entre Maren e Lee é real — mas é também um amor de certa forma fadado, pois ele nasce na terra dos desajustados, dos que jamais serão completamente salvos.
“É possível viver quando se é condenado pelo simples fato de existir?”
O mundo de Maren e Lee é um mundo que nunca vai aceitá-los. Eles são diferentes demais. E isso não é sobre comer carne humana. Isso é sobre ser vulnerável, estranho, sensível…
O sonho deles era pequeno: apenas estar juntos, viajar, talvez encontrar um lar. Mas o caminho até esse sonho foi tão marcado por dor, culpa, vergonha, que quando finalmente se aproximam dele, já não são mais os mesmos. Já estão feridos demais para entendê-lo. Ou para desfrutá-lo.
E talvez essa seja a maior tragédia: quando o sonho finalmente está ao alcance das mãos, você já não consegue mais segurá-lo sem sangrar.
Final em Silêncio
O filme termina em silêncio.
Não há redenção. Não há lição de moral. Apenas o eco amargo do que foi vivido. Maren abraça Lee — ou, ao menos, o que restou dele: uma memória viva que pulsa dentro dela, não apenas no corpo que carrega, mas nas lembranças que ardem como cicatrizes. É o silêncio após a tempestade, o respiro doloroso de quem amou com tanta verdade que perdeu algo de si no processo. Eles não conseguiram vencer o mundo, mas venceram, por um tempo, a solidão.
Até os Ossos não é um filme sobre monstros, nem sobre violência. É um filme sobre amor e identidade, sobre a culpa de existir e a fome de pertencimento. Uma fome que não é por carne, mas por significado. Por um lugar onde sejamos vistos. Onde possamos respirar sem medo de ser esmagados. Somos ensinados a esconder nossas dores, a lapidar nossas arestas, a não incomodar. Mas quem disse que fomos feitos para caber? E se o incômodo for o que nos mantém vivos?
O que o filme nos mostra — sem rodeios, sem piedade — é que todos temos fome de ser quem verdadeiramente somos. E que, por mais doloroso que isso seja, negar-se pode ser ainda pior. Talvez a grande tragédia de viver seja justamente essa: esconder-se tanto de si mesmo a ponto de já não saber mais onde estamos. Por isso, por mais que doa, por mais que sangre, seja você. Seja com as falhas, com a bagunça, com a intensidade. Olhe para dentro, com coragem. O que você vê? Talvez haja dor. Talvez sangue. Talvez culpa. Mas também haverá vida. Haverá beleza. Haverá instantes em que você se sentiu inteiro, mesmo que o mundo dissesse que não devia. E isso talvez baste.
Maren e Lee não foram feitos para este mundo. Mas, e quem foi? Eles se amaram com a urgência de quem sabe que o tempo é um inimigo. Se tocaram com a delicadeza que só quem é ferido entende. Nadar sob os fogos de artifício foi mais do que um momento: foi a afirmação de que, apesar de tudo, eles viveram. E, se viver é um ato de coragem, então eles foram heróis trágicos de sua própria história.
Você pode pensar que ainda vive pouco. Que sua história é curta demais, ou solitária demais, ou irrelevante demais. Mas ela é sua. E o tempo não espera que ela faça sentido. Ele apenas passa. Então viva. Não para agradar, não para performar. Viva para sentir. Para estar. Para ser. Porque o mundo pode até te devorar. Mas, se você se permitir viver com intensidade, ele nunca poderá te apagar de si mesmo.
Caro leitor, te agradeço profundamente por ter chegado até aqui. É um gesto silencioso, mas imenso. Escrever sobre esses filmes é, para mim, uma tentativa de criar pontes — entre mim e você, entre a arte e a vida, entre aquilo que sentimos e o que muitas vezes não conseguimos dizer. Quando uma história me atravessa, eu escrevo. E quando você lê, ela continua viva. No fim, talvez seja isso: a vida só encontra sentido quando é sentida, e só ganha propósito quando é, de fato, vivida — com todas as suas dores, quedas, delírios e pequenas epifanias…